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FOUND FOOTAGE (II): O ASSOMBRO DAS SO(M)BRAS – Carlos Adriano

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atlas Warburg

 

A ruína é a evidência dos restos do tempo. O cinema de reapropriação re(in)staura uma experiência de ruínas. Achar a imagem filmada é reprocessar o tempo reencontrado. Pensar o tempo como montagem de elementos heterogêneos: justa posição poética, aproximação de realidades distantes (salve, P. Reverdy).

Como síntese apropriada e poética para uma prática de cinema, lembro a feliz formulação de Rachel Moore em análise do filme (nostalgia) de Hollis Frampton (1936-1984), filme produzido no mesmo ano (1971) do ensaio sobre a metahistória [1], formulação que funciona como alegoria da metahistória: “criar ruínas é o trabalho da sobrevivência” (MOORE, 2006, p. 67). Em minha tese de doutorado, pude aplicar o conceito de metahistória de Frampton ao cinema de reapropriação de arquivo.

Em função de Sem Título # 1 : Dance of Leitfossil (2013-2014), tive um afortunado encontro com Aby Warburg. O primeiro filme da série “apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso)” – que me permitiu continuar fazendo filmes (e, por extensão, continuar também respirando) – extraía seu título de uma expressão cunhada pelo historiador da arte alemão. E por meio da senha-signo Leitfossil encontrei um motivo (não apenas musical, mas além de um propósito vital) que apliquei ao found footage, conforme pesquisa de meu primeiro pós-doutorado.

Warburg (1866-1929), que tomava a história da arte como sobrevivência de formas (no caso, da Antiguidade no Renascimento), trouxe dois conceitos chave: a “imagem sobrevivente” (sobrevivência da imagem através dos tempos) – a permanência de motivos antigos na arte de tempos posteriores (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 43); e a “fórmula de pathos” – “expressões visíveis de estados psíquicos que as imagens teriam fossilizado” (Gertrud Bing apud DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 23).

Na formulação do leitfossil e da imagem sobrevivente, Warburg trabalha os tempos enterrados, o fóssil como a “vida adormecida em sua forma” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 293). O que remete a Bachelard: “Toda forma guarda uma vida. O fóssil [já] não é mais simplesmente um ser que viveu, [mas] é um ser que vive ainda, adormecido na sua forma.” (BACHELARD, 1988, p. 183).

No gabinete de curiosidades do found footage não existiria arquivo morto; só arquivos vivos, adormecidos em suas formas. No leitfossil, dá-se “a sobrevivência como memória psíquica passível de ‘corporalização’ ou de ‘cristalização’” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 294). Daí é um passo, ou um pas de deux, na dança de apropriação e incorporação.

Warburg falava em “apropriação por incorporação” (MICHAUD, 2013, p. 269), a propósito das reflexões sobre o pensamento mítico e a capacidade do homem em manipular coisas (“estabelecer ligações e separações”), porque, além da antiguidade grega, sua pesquisa voltou-se para os índios pueblos da América. O que me remete à bricolagem tal como sugerida por Lévi-Strauss sobre o pensamento selvagem.

Nas operações de Warburg (e, de resto, nas de found footage) há um gesto de escutar, auscultar as imagens: “‘resgatar o timbre das vozes inaudíveis’ emitidas a partir das imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 35). Para Warburg, a “imagem sofre de reminiscências” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 273) e a memória inconsciente apreende-se como “nó de anacronismos” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 27) – gestos que guardam várias analogias com o filme de reapropriação.

Arquivista convulso e compulsivo, Warburg trabalhou a organização do saber como arquivo. As imagens coligidas e montadas por ele no atlas Mnemosyne (em que ele justapôs reproduções de obras de arte de diversas épocas e funciona como um banco de dados ativo para seu lance de dados da montagem mallarmaica de imagens sobreviventes através dos tempos) seriam engramas – “imagem-lembrança” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 206) – e seriam (por consequência na analogia com a montagem cinematográfica) fotogramas (MICHAUD, 2013, p. 296).

Com seu atlas de imagens Mnemosyne, Warburg instituiria “uma verdadeira metodologia de montagem do ‘filme’ na história da arte” (MICHAUD, 2013, p. 9), que conversaria à distância com a montagem de atrações representada tanto no cinema das origens como em Eisenstein. O próprio Warburg chamou seu procedimento operacional de “iconologia dos intervalos” (MICHAUD, 2013, p. 240), o que para mim ecoaria na teoria de montagem de Dziga Vertov. E seu atlas ecoaria ainda o “cinema infinito” de Frampton, que embaralha “filme” e “cinema”. [2]

A segunda parte deste Dossiê poderia ser separada, a (um bem) grosso modo, em quatro blocos temáticos, cujos artigos encadeiam-se segu(i)ndo uma outra espécie de apresentação que não a da sequência (ou segmentação) temática. Artistas escrevem sobre found footage: Al Razutis; Craig Baldwin; Cécile Fontaine; Guy Debord. Martin Arnold concede entrevista a Éric Thouvenel e Carole Contant. Estudiosos escrevem sobre um filme ou o conjunto da obra de diferentes artistas: Joseph Cornell por Catherine Corman; Bruce Conner por Bruce Jenkins; Péter Forgács por Beatriz Rodovalho; Paolo Gioli por Bruno Di Marino; Bill Morrison por Alexandre Rodrigues da Costa e Miriam Aparecida Mendes; José Luis Guerín por Victor Guimarães; Gábor Bódy por Judit Pieldner; Christian Marclay por Margot Bouman. Para uma questão polêmica, Pascale Cassagnau escreve sobre o direito de autor.

Pensando sobre Mnemosyne, “meses antes de morrer”, Warburg afirmava “que a história das imagens deve ser compreendida como uma ‘história de fantasmas para gente grande’” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 426). Espectros e remanescências da imagem sobrevivente poderiam ser um mote para os filmes de found footage. Depositários e repositórios de memória e montagem, entre perdidos e achados.

No fim de uma conferência em 1912 em Roma, Warburg fez uma declaração tão enigmática quanto inspiradora (que eu até poderia adotar para este dossiê, para qualquer conferência, artigo ou mesmo filme): “Caros colegas! Resolver um enigma em imagens – sobretudo quando não podemos esclarecê-lo de maneira simples e constante, mas apenas fornecer dele uma espécie de projeção cinematográfica – não foi, evidentemente, o objetivo de minha exposição.” (MICHAUD, 2013, p. 39).

Segundo Mallarmé, tudo existia para acabar em livro. Seguindo Borges, o mundo para caber numa biblioteca. Conseguindo Warburg, as imagens de tudo para sobreviverem em atlas de memórias em movimento (do pensamento, das articulações). Mas hoje, “pós-tudo”, “tudo existe pra acabar em youtube”, como escreveu e cravou Augusto de Campos em seu poema tvgrama 4 erratum (CAMPOS, 2015, p. 37). Re(en)cantar o mundo, (re)verter o clichê em assombro, eis algumas urgências para o found footage.

 

Carlos Adriano
Editor do Dossiê “Found Footage

Cineasta, doutor em cinema (USP), pós-doutor em artes (PUC-SP) e pós-doutorando em cinema (USP). Recebeu as bolsas Vitae de Artes, de Doutorado Fapesp, de Pós-Doutorado Fapesp e de Pós-Doutorado Capes. Nos últimos 26 anos realizou 13 filmes, como: Remanescências; A voz e o vazio: a vez de Vassourinha; Santoscópio = Dumontagem; Santos Dumont pré-cineasta?, Sem Título # 1: Dance of Leitfossil e Sem Título # 2: la mer larme. Com Bernardo Vorobow é organizador da antologia Julio Bressane: cinepoética e autor do livro Peter Kubelka: a essência do cinema.

 

[1] A metahistória é um artifício ético-estético que permite ao artista continuar compondo seus trabalhos de modo que ainda se justifiquem seu projeto pessoal e a pertinência do meio em que atua. A partir de uma linhagem (à la Pound e Borges), elegem-se parâmetros de formação para um programa poético. As novas obras se articulariam com as obras antigas numa constelação de invenção, um arquivo infinito de imagens e sons destinado a inseminar consistência ressonante ao seu processo de produção. Ver FRAMPTON, 2009, p. 131-139.

[2] Aludido no citado ensaio sobre a metahistória, onde Frampton usa “film” para tratar tanto de “filme” (o objeto de arte, o artefato) como de “cinema” (a arte, a instituição).

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
CAMPOS, Augusto de. Outro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
___________. “Prefácio”. In: Michaud, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013a.
FRAMPTON, Hollis. On the camera arts and consecutive matters. Org.: Bruce Jenkins. Cambridge, MA/ Londres: The MIT Press, 2009.
MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013a.
MOORE, Rachel. Hollis Frampton: (nostalgia). Londres: Afterall Books, 2006.
ROSA, Carlos Adriano Jeronimo de. O mutoscópio explica a invenção do pensamento de Santos Dumont: cinema experimental de reapropriação de arquivo em forma digital. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação, área de concentração Estudo dos Meios e da Produção Mediática. Orientador: Prof. Dr. Ismail Norberto Xavier. Universidade de São Paulo (Escola de Comunicações e Artes), 2008.

 

Astaire Rogers 1

 

 

 

 

 

 

 

Lista de colaboradores
Al Razutis; Abigail Child; Andrea Tonacci; Bia Rodovalho; Bruce Jenkins; Bruno Di Marino; Carlos Nader; Catherine Corman; Catherine Russell; Cécile Fontaine; Craig Baldwin; Ewerton Belico; Geraldo Veloso; Guy Debord; Brian Keith Bergen-Aurand; Jean-Claude Bernardet; Judit Pieldner; Ken Jacobs; Malcolm Le Grice; Marco Bertozzi; Margot Bouman; Éric Thouvenel, Carole Contant e Martin Arnold; Elena Oroz, Matthias Müller e Christoph Girardet; Michel Favre; Michael Zryd; Morgan Fisher; Nicole Brenez e Pip Chodorov; Nicole Brenez; Olgária Matos; Grant McDonald e Paolo Cherchi Usai; Pascale Cassagnau; Peter Delpeut; Peter Kubelka; Peter Tscherkassky; Ramiro Díaz e Jorge La Ferla; Scott MacDonald e Jen Proctor; Scott MacDonald e Ernie Gehr; Tom Gunning; Victor Guimarães; William C. Wees; Yann Beauvais; Zoe Beloff

 

Agradecimentos
Aos Artistas, aos Autores que escreveram textos originais especialmente para este dossiê e aos Autores que permitiram a republicação de textos já existentes.
E a: Ariane Michaloux; Kathy Geritz; Diane Grossé; Jaap Guldemond; José Luiz Sasso; Laura Hunt; Nicholas Yeaton; Paolo Vampa; Peter Froehlich; Stacey Allan; Stephania Petriella; Steve Anker; Steve Seid; Ted Perry.

 


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